Vedānta e o Mundo Contemporâneo

Artigos por Ciro Castro


Um espaço para reflexões sobre espiritualidade, cultura, história e sociedade. A partir dos princípios do Vedānta, busco clareza, rigor e equilíbrio na leitura do mundo 

Vedānta e a reconciliação com a História: por que não podemos viver eternamente do passado

Por Ciro Castro


No mundo contemporâneo, marcado por uma superexposição das dores coletivas e pelo imperativo da reparação histórica, tornou-se cada vez mais difícil manter uma postura equilibrada diante da complexidade do passado. Em nome da justiça, muitos têm incorrido em revanches simbólicas, revisionismos rancorosos e interpretações parciais da história. Compreender o sofrimento de povos oprimidos é necessário, sem dúvida. No entanto, ressignificar eternamente a dor como moeda moral — ou como justificativa para atitudes mesquinhas no presente — é uma armadilha tanto espiritual quanto ética.


É aqui que os ensinamentos do Vedānta, tradição filosófica central do pensamento indiano, podem oferecer uma contribuição singular: a reconciliação com o passado começa no indivíduo. E não no Estado, nem na estrutura de poder.


Segundo o Vedānta, toda dor, por mais real que seja no plano empírico, é agravada por uma identificação equivocada com aquilo que não somos. O ser humano, quando se confunde com suas dores, traumas ou histórias, passa a viver prisioneiro do tempo psicológico. Ele arrasta feridas como se fossem sua identidade última — e por isso, projeta no mundo a sua própria fragmentação interna. O ressentimento, então, não é apenas político: é existencial.


A lógica do ressentimento coletivo se manifesta na política, na cultura e nas redes sociais: “Eu fui oprimido, logo posso oprimir”, “Você deve me pagar pelo que seus antepassados fizeram”, “Minha dor é incontestável e me isenta de qualquer autocrítica”. A partir dessa mentalidade, cria-se um campo simbólico onde o direito à fala vem da dor, não da sabedoria; e onde a verdade cede lugar à narrativa emocional. O que parecia justiça torna-se revanche — e o que parecia consciência torna-se repetição cega de sofrimento.


Claro que há dores que precisam ser reconhecidas: o colonialismo, a escravidão, os massacres culturais e linguísticos de povos originários e de nações ocupadas por impérios. Não se trata de negar o passado ou silenciar os ofendidos. Mas há uma diferença essencial entre reconhecimento e cristalização. Um povo, como um indivíduo, só se liberta quando deixa de se identificar com suas cicatrizes como se fossem sua natureza essencial.


Não é preciso ser indiano, africano ou europeu para entender que a libertação não vem de mudar o outro, mas de compreender a si mesmo. O que o Vedānta nos lembra é que não somos nossos antepassados, nem suas glórias ou crimes. Somos consciências encarnadas, sujeitas à ignorância e à iluminação. Se não compreendermos isso, viveremos num eterno ciclo de culpa e cobrança — o mesmo saṃsāra que os textos védicos há milênios nos convidam a transcender.


Na tentativa de subverter a hierarquia histórica, muitos discursos contemporâneos acabam por invertê-la, transformando o opressor de ontem no alvo eterno de piadas, desprezo e cobranças generalizadas. Isso é contraproducente. Portugal, por exemplo, tem sido objeto de chacotas em determinados meios intelectuais e culturais brasileiros, como se a simples origem lusitana carregasse um carma irredimível. Não se trata de inocentar impérios, mas de evitar que a crítica legítima descambe em caricatura ideológica. A história pode ser criticada, mas não corrigida com memes.


Além disso, há algo de espiritual e politicamente perigoso em perpetuar o ressentimento. Quando uma sociedade constrói sua identidade com base no trauma, ela pode passar a reproduzir no presente as dinâmicas de exclusão que ela própria sofreu. Há migrantes que, ao exigirem acolhimento, não demonstram o mesmo respeito às culturas que os recebem. Há movimentos que, ao condenarem o colonizador, imitam em algum nível sua rigidez e prepotência. O ciclo, mais uma vez, se repete.


A verdadeira ética — seja ela espiritual, filosófica ou política — não se baseia na dor, mas na capacidade de transcendê-la com consciência. A maturidade histórica de um povo se expressa quando ele reconhece seu passado, mas não o usa como álibi eterno. Quando entende que sua força está na superação, não na repetição. E quando compreende que a reconciliação com a história não é um favor ao outro — é um ato de liberdade interior.


É nesse ponto que espiritualidade e política se encontram: ambas exigem discernimento. O discernimento de quem não quer apagar a história, mas também não deseja viver eternamente nela.

O tempo é profundo demais para julgá-lo apenas com a régua do agora

Por Ciro Castro


Vivemos um tempo em que o passado parece ter se tornado réu. Em nome de uma moral recém-formada, tenta-se julgar a história como quem corrige um erro de redação: riscando, reescrevendo, invalidando o que veio antes de nós. Como se, enfim, uma geração houvesse alcançado o ponto alto da lucidez e agora pudesse corrigir todas as anteriores.


Essa ideia, embora compreensível num tempo marcado por traumas sociais mais visíveis e denunciáveis, carrega um risco: o de achatar a história, perdendo suas camadas, seus ritmos e a profunda complexidade que é viver em contextos éticos em constante mutação. Quando julgamos o passado totalmente com a régua do presente, não praticamos justiça — praticamos anacronismo.


A tradição indiana, que se desenvolveu ao longo de milênios com um olhar voltado para o tempo profundo, nos oferece um antídoto valioso: discernir o que é absoluto do que é relativo. Essa é a base do viveka, conceito central no Vedānta. Enquanto as circunstâncias sociais, políticas e morais se transformam, há algo que não muda: a condição humana, com suas buscas fundamentais — sentido, pertencimento, superação da dor.


Charles Darwin, ao formular sua teoria da evolução por seleção natural, ofereceu ao mundo uma chave de leitura que extrapola a biologia. Não é o mais forte que sobrevive, mas o mais adaptável. Essa verdade, que parece óbvia no campo das espécies, é raramente aplicada à ética e à cultura. Mas deveria. A moral de uma época é, em parte, sua forma de adaptação. Ela responde a pressões, medos, conflitos e esperanças daquele tempo. Condená-la fora desse contexto é não compreender sua função histórica — e, por vezes, seu custo.


Isso não significa justificar erros. Mas reconhecer que a história da humanidade é, como disse o filósofo francês Paul Ricoeur, uma luta constante entre a memória e o esquecimento. Precisamos lembrar, sim, mas também compreender que a lembrança que cura não é aquela que acusa, e sim a que integra.


A Índia antiga não apagava os conflitos de seu passado. Ela os transmutava em narrativas, mitos, tratados éticos e perguntas filosóficas que atravessam os séculos. Textos como a Bhagavad Gītā ou os Upaniṣads não propõem soluções imediatas. Eles ensinam a ver, com clareza, a relação entre o eu e o mundo, entre o que é transitório e o que é essencial. O olhar do sábio, dizia a Gīta, é o mesmo para o nobre, o mendigo, a vaca, o elefante. Isso não é indiferença: é equanimidade.


Num momento em que muitos buscam identidade na diferença e poder na dor, talvez seja o caso de voltarmos à escuta dos mais antigos. Não no sentido de repetir o passado, mas de compreendê-lo. Há uma inteligência emocional ancestral em reconhecer que a humanidade avança em passos lentos, por vezes contraditórios, e que todo salto civilizatório se dá entre perdas e ganhos.


Faz pouco tempo que tínhamos que buscar água num poço. Hoje, abrimos a torneira e temos água limpa, aquecida e pressurizada. Isso não nos torna superiores aos que vieram antes. Mas nos convida à gratidão. A cada geração, há avanços. E a cada avanço, uma nova responsabilidade ética se impõe.


O problema não é querer um mundo melhor. É acreditar que essa tarefa começou comigo. O presente tem o dever de agir, sim. Mas não o direito de se julgar juiz da história. O tempo é antigo demais para caber nos filtros de hoje. E nós somos novos demais para entender tudo.

O lugar da dor não é o fim do caminho

Por Ciro Castro


Imagine a cena: você busca um terapeuta. Está cansado de repetir padrões que sabotam suas relações, seu trabalho, seu bem-estar. Na sessão, ele escuta com atenção, propõe reflexões, questiona algumas certezas. E você, toda vez, responde: “Você não viveu o que eu vivi. Você não entende. Não tem lugar de fala.” Esse diálogo não avança. E, mais que isso, esse impasse não cura.


Estamos nos acostumando a esse tipo de relação com a sociedade, com a história, com os outros — e até conosco. As feridas, que deveriam nos tornar mais lúcidos e compassivos, estão se tornando trincheiras. A dor, que deveria abrir espaço para transformação, vira identidade. Como se não houvesse vida além do trauma. Como se justiça fosse sinônimo de compensação eterna.


Mas há algo profundamente infantil nesse lugar. Um tipo de narcisismo da dor. Como disse Carl Jung, “não se torna iluminado imaginando figuras de luz, mas tornando consciente a escuridão.” Reconhecer a dor, sim. Mas não fazer dela morada.


Na tradição do Vedānta, essa tendência de viver sob o domínio das impressões passadas chama-se samskāra — resíduos psíquicos que moldam nossas reações. Não somos culpados por tê-los, mas somos responsáveis pelo que fazemos com eles. O ensinamento clássico diz que enquanto reagimos, não somos livres. A liberdade não está em negar o passado, mas em não ser refém dele. Śaṅkarācārya, em seu comentário à Bhagavad Gītā, afirma: “O conhecimento de si mesmo dissolve os vestígios do sofrimento como o sol dissipa a névoa matinal.”


É claro que existem injustiças históricas e individuais que precisam ser nomeadas e reparadas. Mas uma sociedade que se organiza apenas a partir da dor não constrói o novo — apenas exige do outro uma eterna retratação. Como se o passado fosse um débito infinito e o futuro, apenas uma negociação de indenizações morais.


Nietzsche já alertava: “quem luta com monstros deve ter cuidado para não se tornar também um monstro.” E é disso que se trata: o perigo de reproduzir, com outras cores, os mesmos mecanismos que nos feriram. O ressentimento, travestido de justiça, é um veneno que se disfarça de virtude.


Simone Weil escreveu que “a dor social precisa ser compreendida, mas jamais glorificada.” E Hannah Arendt, ao refletir sobre os perigos da vitimização coletiva, nos adverte: “É na ausência de responsabilidade que a tirania do sofrimento encontra seu espaço.” Essas mulheres, oriundas de contextos de intensa dor histórica, não confundiram justiça com culto à ferida.


A maturidade — seja no processo terapêutico, seja na vida em sociedade — não está em esquecer a dor. Está em não se identificar com ela. Está em usar a dor como degrau, não como trono.


O desafio é construirmos pontes entre nossas feridas e a escuta do outro. Entre a memória e a superação. Entre a dor legítima e a possibilidade real de libertação.


Porque, no fim, todos estamos no mesmo processo: tentando nos curar de nós mesmos. E para isso, é preciso coragem. Coragem de ouvir. Coragem de ser confrontado. Coragem de não viver para sempre sob a sombra daquilo que nos faltou.

Entre o Colo e o Caminho: a diferença essencial entre tutela e acolhimento

Por Ciro Castro


Vivemos um tempo em que se confundem profundamente os gestos de cuidado. No campo da saúde emocional, da educação, da espiritualidade e até das políticas públicas, a linha entre acolher e tutelar parece cada vez mais tênue. Essa confusão, no entanto, tem consequências diretas na formação de sujeitos maduros, autônomos e capazes de responder aos desafios da vida com dignidade.


Tutela e acolhimento são experiências humanas distintas. A primeira carrega o gesto de substituição — alguém se coloca no lugar do outro, assumindo responsabilidades, decisões, escolhas. Trata-se de um movimento de proteção, sim, mas também de controle. É o colo que embala, a mão que guia, o afeto que impede a queda. Em situações de trauma, de desequilíbrio emocional ou de extrema vulnerabilidade, a tutela pode ser não apenas necessária, mas vital. Há momentos em que o ser humano não consegue responder por si, e precisa, legitimamente, ser cuidado com totalidade.


Mas é justamente aí que começa o problema: quando a tutela, necessária no início, não evolui para o acolhimento. Quando o gesto de fazer pelo outro não dá lugar ao gesto de caminhar ao lado. Acolher é sustentar o outro no seu processo de retomada, sem roubar dele a autoria da própria vida. É ouvir, orientar, estar presente — mas também cobrar, provocar, instigar a ação. Acolher é dizer: “E agora, o que vamos fazer com isso?” Não se trata mais de carregar no colo, mas de ensinar a andar.


O psicólogo Carl Rogers, ao desenvolver a Abordagem Centrada na Pessoa, enfatizava que o crescimento humano se dá num ambiente que combina aceitação incondicional com estímulo ao amadurecimento. Para ele, o espaço terapêutico ou educacional ideal era aquele onde o indivíduo se sentia profundamente aceito como era — mas, ao mesmo tempo, era desafiado a se tornar aquilo que podia ser. A contradição aparente, como ele mesmo dizia, é que só quando me aceito como sou, posso mudar de verdade.


É nesse ponto que a tradição do Yoga e do Vedānta nos oferece uma chave preciosa. No universo do Yoga contemporâneo, muitos se aproximam da prática buscando apenas tutela — e isso é legítimo. Quem está em crise, quem atravessa dores profundas, precisa encontrar um espaço onde possa respirar. No entanto, o Yoga não é — e nunca foi — apenas um espaço de conforto emocional. Ele é, antes de tudo, um caminho de autopercepção. Acolher o praticante, sim. Mas conduzi-lo com firmeza em direção à lucidez (viveka), ao desapego (vairāgya), ao esforço disciplinado (tapas).


O mestre na tradição védica não é aquele que alivia o caminho do discípulo, mas o que ilumina o caminho — mesmo que isso signifique confrontá-lo com verdades duras. Como diz o próprio Śrī Kṛṣṇa na Bhagavad Gītā, é preciso agir com coragem, firmeza e discernimento. A vida não se resolve com colo eterno. Ela pede postura. Pede responsabilidade. Pede ação.


Albert Camus, refletindo sobre a condição humana, escreveu que “o verdadeiro homem sério é aquele que se recusa a enganar os outros e a si mesmo.” Em um mundo que banaliza o sofrimento e transforma qualquer desconforto em trauma, talvez seja urgente lembrar que crescer dói — e que nem todo desconforto é opressão. Acolher é dar suporte para atravessar esse desconforto com dignidade, não apagá-lo.


No fim das contas, a verdadeira maturidade talvez esteja em saber a hora de receber o colo e a hora de se levantar. De aceitar, sim, o cuidado quando ele é necessário — mas também de dizer: “Obrigado. Agora é comigo.”

O Gato e a Maturidade Emocional: lições de um mestre silencioso

Por Ciro Castro


Os gatos não bajulam. Não obedecem comandos por reflexo condicionado. Não mendigam afeto. Muitos, por isso, os chamam de “traidores”, “indiferentes”, “autossuficientes demais”. Mas o que essas críticas revelam, na verdade, não é a natureza do gato — e sim a imaturidade emocional de quem os observa.


É preciso estar emocionalmente evoluído para compreender um ser que se relaciona sem subserviência. O gato não se entrega por medo, não permanece por carência, não ama por obrigação. Ele escolhe estar. E, ao fazê-lo, nos convida a um tipo de relação mais limpa, mais verdadeira — uma relação baseada no respeito mútuo e na liberdade.


Na obra O Mito de Sísifo, Albert Camus escreve: “Não há destino que não se supere pelo desprezo” — um desprezo aqui entendido como a recusa a ser governado pelas forças externas, pela necessidade de agradar ou de corresponder a expectativas alheias. O gato, em sua dignidade silenciosa, parece encarnar esse tipo de liberdade interior. Quando permanece ao seu lado, está oferecendo algo raro: a chance de nos relacionarmos sem grilhões emocionais. Com presença e autonomia.


Na tradição do Vedānta, o caminho do autoconhecimento começa com viveka — a capacidade de discernir o real do ilusório. Um gato vive essa sabedoria sem precisar verbalizá-la. Ele reconhece o essencial: o tempo, o espaço, o silêncio. Ignora os excessos, as insistências, os afetos performáticos. Ele permanece onde há verdade — e isso deveria nos ensinar algo sobre nós mesmos.


Em sua Ética a Nicômaco, Aristóteles afirma: “A amizade perfeita é a dos homens bons e semelhantes em virtude” (Livro VIII, cap. 3). O gato, embora não humano, nos testa nessa virtude: ele exige que sejamos bons, constantes, confiáveis, sem a necessidade de domesticação. Ele nos pede integridade, e não submissão. Nos quer por perto, mas não grudados. Nos ama, mas não nos pertence.


Na lógica védica, essa postura se aproxima de vairāgya — o desapego lúcido. Não é frieza, é clareza. O gato se afasta do que é incoerente, do que é invasivo. Ele não dramatiza, não faz cena. Apenas se vai — como um sábio que já transcendeu o ruído. E nos convida, com seu exemplo, a fazer o mesmo com tudo aquilo que já não faz mais sentido em nossa vida.


Conviver com um gato é aceitar o desafio de crescer. De sair do modelo infantil de amor, que exige certezas, respostas e provas constantes. É aprender a estar com o outro sem controlar, a cuidar sem sufocar, a amar sem possuir. O gato nos ajuda a abandonar a ansiedade do apego e a experimentar a liberdade da presença.


Em tempos de relações líquidas e egos inflamados, o gato nos ensina a arte da contemplação. Ele senta ao lado, em silêncio — e está inteiro. Ele não precisa de palavras para provar que está com você. E talvez seja por isso que, em seu silêncio, ele seja mais eloquente que muitos humanos barulhentos.


Sim, o gato é nobre. Mas, sobretudo, é mestre. Só precisamos estar prontos para aprender.

A dignidade do contraditório

Por Ciro Castro


A maturidade emocional de uma sociedade — e também de um indivíduo — pode ser medida pela sua capacidade de escutar aquilo que não confirma suas próprias convicções. Parece simples, mas não é. Vivemos um tempo em que o contraditório, esse fundamento essencial de toda cultura democrática, tem sido confundido com ataque pessoal, ameaça identitária ou até mesmo ofensa moral. É como se qualquer ideia que diverge da nossa fosse imediatamente um erro — ou um perigo.


Essa fragilidade emocional, muitas vezes travestida de coerência, tem se espalhado silenciosamente. E ela se alimenta de uma tendência antiga, porém acentuada nos últimos anos: a de transformar a própria vivência em medida absoluta da realidade. “Eu penso assim”, “sempre foi assim”, “todo mundo ao meu redor concorda” — são frases que não expressam argumentos, mas sintomas. Sintomas de uma bolha afetiva, cognitiva e cultural. O filósofo espanhol José Ortega y Gasset já dizia, com precisão desconcertante: “O homem é ele e sua circunstância.” Mas quando ignoramos a circunstância do outro, passamos a agir como se fôssemos apenas nós — e o mundo, um espelho da nossa própria história.


É preciso afirmar com clareza: as pessoas têm o direito de pensar diferente de você. Essa obviedade, que deveria estar no alicerce de qualquer convívio civilizado, parece hoje ser um lembrete incômodo para muitos. O pensamento único, quando enraizado na experiência pessoal, vira uma forma sutil de autoritarismo emocional. E esse autoritarismo não precisa de poder formal para fazer estragos: ele se infiltra no cotidiano, nas redes, nas conversas de família, no modo como tratamos opiniões divergentes — muitas vezes, com sarcasmo, desprezo ou superioridade moral.


A escuta verdadeira pressupõe abertura, humildade e, sobretudo, interesse real pelo outro. Não se trata de tolerância passiva, como quem ouve só para poder responder com mais força. Trata-se de um movimento interno: o reconhecimento sincero de que o outro carrega uma biografia distinta da minha, e que, portanto, suas ideias não precisam se enquadrar nas categorias que eu uso para organizar o mundo.


Esse reconhecimento é um gesto ético e intelectual. Ético, porque nos impede de desumanizar o diferente. Intelectual, porque nos protege da arrogância do pensamento único. Ao escutar alguém cuja visão de mundo diverge da nossa, temos a chance de exercitar não apenas a empatia, mas a autocrítica. E isso é precioso.


É claro que isso não significa aceitar qualquer ideia como válida. Não se trata de relativismo ingênuo. Existem argumentos melhores do que outros, há visões de mundo que geram mais dignidade e liberdade do que outras. Mas esse discernimento precisa vir do exame atento, da análise ponderada — não do reflexo automático que rejeita tudo o que não confirma nossas crenças.


Pensemos em uma pessoa que cresceu nos vales do Nepal, por exemplo. Sua formação emocional, espiritual e simbólica será profundamente distinta daquela de alguém criado na zona oeste de São Paulo. E, mesmo com toda a comunicação globalizada, esses mundos não se anulam — eles coexistem. A verdadeira diversidade não é um desfile de diferenças exóticas, mas um convite à revisão constante das nossas certezas. Um chamado a sair de si, sem perder-se de si.


O filósofo romeno Emil Cioran, em um de seus escritos menos citados, observou: “Só quando aceitamos que poderíamos estar errados é que nos tornamos verdadeiramente humanos.” A frase, embora dura, expressa um ponto essencial: a dúvida não é um defeito, é uma virtude. E a disposição para o contraditório não enfraquece nossas ideias — pelo contrário, as fortalece. Quando submetemos nossas convicções ao crivo da escuta e do embate respeitoso, elas deixam de ser dogmas e tornam-se argumentos.


O que temos visto, no entanto, é uma infantilização do debate público. Trocas de ideias são reduzidas a disputas de vaidade. Oposição de pontos de vista vira cancelamento. Divergência vira quebra de afeto. É como se só conseguíssemos amar ou respeitar quem pensa igual a nós. Mas isso não é amor — é apego narcísico ao próprio reflexo.


A democracia exige mais do que voto. Ela exige convivência com a diferença. E essa convivência é construída, no dia a dia, pela escuta madura, pela renúncia ao julgamento apressado, pelo esforço contínuo de compreender antes de combater. Afinal, como nos lembrava Hannah Arendt, “compreender é o ato sem o qual não há justiça”.


Aceitar o contraditório não é capitular. É crescer. É sair do lugar confortável das certezas absolutas para entrar na zona de maturidade, onde o pensamento é vivo, o afeto é plural e a convivência é possível.

A Índia não tem muitos deuses: ela tem uma só Realidade com muitos nomes

Por Ciro Castro


“Deus é um só”. A frase, tão comum nas tradições monoteístas ocidentais, muitas vezes se choca com a visão que muitos têm da Índia como uma terra politeísta, povoada por um panteão quase interminável de deuses, deusas, avatares, formas e expressões divinas. Mas isso é, de fato, um equívoco de leitura — uma ilusão cultural. A tradição indiana não é politeísta no sentido ocidental do termo. Ela é, desde seus textos mais antigos, um exemplo maduro de monoteísmo polimórfico: há uma única Realidade, uma só Consciência, que se manifesta em diversas formas para dialogar com a complexidade da existência humana.


No Ṛg Veda (I.164.46), texto que data de pelo menos 1.500 a.C., encontramos uma afirmação que sintetiza essa visão: “Ekam sat viprā bahudhā vadanti” — “A Verdade é uma só, os sábios a chamam por muitos nomes.” Eis aqui o princípio: há uma única Essência (Brahman), mas múltiplas linguagens para se relacionar com ela. Shiva, Vishnu, Devi, Ganesha, Krishna, Rama, Hanuman — são expressões dessa mesma Realidade única, assumindo formas, nomes e histórias distintas para responder às necessidades emocionais, éticas e espirituais de cada ser humano.


É como acontece conosco: eu sou o mesmo Ciro. Mas quando minha mãe me chama, sou o filho. Quando a aluna me chama, sou o professor. Quando estou no futebol, sou o meia-direita. Não me torno múltiplos seres, mas assumo facetas diferentes, conforme a relação que se estabelece. O mesmo acontece com o divino, conforme compreendido pela tradição védica e posteriormente desenvolvido nas escolas filosóficas como o Vedānta.


Essa pluralidade não é fragmentação: é relação. É maturidade teológica e psicológica. A tradição indiana não busca uma uniformidade da experiência religiosa, mas sim uma intimidade plural com o divino. Krishna, na Bhagavad Gītā (4.11), diz: “Ye yathā māṁ prapadyante tāṁs tathaiva bhajāmy aham” — “De acordo com a maneira como se aproximam de mim, assim eu me manifesto a eles.” Essa é uma teologia relacional, onde o absoluto se permite ser encontrado na forma que for mais significativa para o buscador.


Essa sensibilidade toca uma dimensão muitas vezes esquecida nas discussões teóricas sobre religião: a emocional. Não se trata apenas de definir o que é Deus, mas de viver uma relação com o sagrado que faça sentido para o indivíduo em sua fase de vida, em seu contexto, em sua dor. Por isso há a presença do protetor (Rama), do amoroso (Krishna), da mãe cósmica (Devi), do removedor de obstáculos (Ganesha), do mestre interior (Dakṣiṇāmūrti), entre tantos outros. Cada forma divina representa um aspecto da realidade humana, refletindo necessidades existenciais diferentes.


Enquanto no Ocidente se busca frequentemente um Deus universal com uma única narrativa, a Índia oferece uma constelação de narrativas para um único Princípio. Não é uma mitologia concorrente, mas uma pedagogia do sagrado. Como dizem os textos: “Brahman is one without a second” — Ekam eva advitīyam (Chāndogya Upaniṣad 6.2.1). Mas para que essa unidade seja compreendida, é necessário que o Uno se mostre múltiplo, tal como a luz branca se desfaz em arco-íris ao passar por um prisma.


Ao contrário do que se pensa, a Índia não tem um “excesso” de deuses. Tem, sim, uma refinada psicologia da devoção. Cada forma é um espelho para o praticante reconhecer em si aspectos que precisam ser desenvolvidos ou curados. O ser humano é plural, contraditório, sensível — e é por isso que o divino também se mostra assim. Quando se entende isso, percebe-se que o chamado politeísmo indiano é, na verdade, uma profunda resposta espiritual à complexidade humana.


O que os ṛṣis (sábios) védicos nos ofereceram não foi um sistema religioso rígido e excludente, mas um mapa de possibilidades para o relacionamento com o infinito. Nisso, talvez, esteja uma das maiores contribuições da Índia ao pensamento humano: mostrar que o divino não é um conceito a ser defendido, mas uma realidade a ser vivida — em muitas formas, com um só coração.